Notas perfumadas que despertam os sentidos

Não é de hoje que o universo de bebidas destiladas vem alimentando a paleta dos perfumistas, trazendo notas singulares de alto potencial narrativo. "Essas notas conferem tonalidades e cores marcantes, em particular às composições masculinas", afirma Jean Jacques, perfumista da Maison Caron. "Conhaque, uísque e outras bebidas alcoólicas consideradas ’fortes’ dão um toque amadeirado, meloso, ambarado, turfado ou abaunilhado que combina perfeitamente com muitas notas do repertório clássico. São notas altamente figurativas que provocam um impacto sensorial marcante".

Com sua rica herança histórica, o mestre absoluto no cruzamento entre esses universos é, sem dúvida alguma, a Kilian Hennessy e sua coleção Les Liqueurs. Nessa linha de fragrâncias da marca Kilian, os protagonistas são os espirituosos, presentes no perfume Angels Share, com sua essência de conhaque, bem como na fragrância Roses on Ice, que traz notas de gim.

Sejam elas vivas (bagas de zimbro no perfume Juniper Sling, da Penhaligon), misteriosas (novamente o conhaque, no Liqueur Charnelle, da Pierre Guillaume) ou envolventes (um toque de rum na fragrância Spiritueuse Double Vanille, da Guerlain), essas notas são uma fonte constante de inspiração para os perfumistas.

Na fragrância Pour Un Homme de Caron Le Soir, a essência de madeira de carvalho utilizada por Jean Jacques provém de barris de conhaque reciclados. Mais do que a descoberta do conhaque, o objetivo é se deixar cativar por uma nota inédita, surpreendente e irresistível.

"A ideia é dar origem a notas que suscitem relevo, sensações e vibrações", conclui Jean Jacques.

Para além da inspiração, o universo dos espirituosos muitas vezes empresta seu know-how para ampliar o potencial de um perfume.

Scents of Wood e Maison Psyché: perfumes envelhecidos em barris

Reconhecido como um método que confere estrutura e caráter à composição de destilados, até onde o envelhecimento em barril é capaz de modificar e sublimar também um perfume, com base no mesmo princípio?

Esse foi o pressuposto que deu origem à marca Scents of Wood, l’Âme du bois, criada por Fabrice Croisé, que realizou experiências tanto com barris novos como com tonéis já utilizados na produção de conhaque, calvados ou uísque.

O álcool orgânico destinado à formulação dos perfumes da marca é envelhecido em barris de carvalho, de momiji (bordo-campestre) ou de outras madeiras habitualmente usadas no universo dos espirituosos. Em seguida, o perfumista pode selecionar o álcool que melhor corresponde à sua criação, conferindo o toque final com uma nota amadeirada.

O nome dos perfumes da marca Scents of Wood refletem a sinergia das matérias-primas: Sandalwood in Oak, Oud in Acacia e Praline in Maple traduzem essa ode espirituosa à madeira, desde a composição até a maturação.

A expertise do setor de tanoaria inspirou também a criação da marca de nicho Maison Psyché, que nasceu do encontro entre Baptiste Loiseau, responsável pela adega da Maison Rémy Martin, e Sophie Labbé, perfumista sênior da Firmenich. O diferencial das criações olfativas dessa marca é o fato de permanecerem em pequenos tonéis de carvalho em meio aos barris de vinho da Maison Rémy Martin, sediada na cidade francesa de Cognac. O objetivo é dar vida à arte de usar o tempo e a madeira para revelar a essência das matérias-primas.

Distillerie de Paris: utilização iconoclasta do álcool

Numa era em que os perfumes à base de álcool estão perdendo terreno para os perfumes sólidos ou à base de água, não é incrível imaginar que o álcool possa reconquistar seu antigo prestígio? Até onde é possível questionar essa base tradicionalmente neutra a fim de criar novas sinergias?

Explorar todo esse potencial é o que Nicolas Juhlès, fundador da Distillerie de Paris, busca desenvolver na linha de perfumes que leva o nome da marca.

Aficionado por perfumes, esse inspirado Mestre Destilador se lançou no desenvolvimento de composições olfativas com a assessoria dos perfumistas Benoist Lapouza e Annick Ménardo, entre outros profissionais. Com eles, Nicolas Juhlès não tardou a encontrar uma linguagem em comum, resultando na criação de um concentrado.

"Porém, quando chegou a hora de incorporar o concentrado ao álcool, tive a impressão de perdê-lo", explica ele. "Nós, mestres destiladores, não gostamos de trabalhar com álcool neutro, porque ele tem uma dimensão austera e metálica. Por isso, busquei retomar as rédeas do processo, criando álcoois específicos para perfumes".

Para esse profissional, o álcool usado na produção de perfumes deve veicular um significado e ser capaz de oferecer várias nuances em termos de sensibilidade, à imagem do material no qual se imprime uma obra de arte ou do papel usado na caligrafia japonesa (e considerado como um de seus "tesouros").

Com essa proposta, Nicolas Juhlès capitalizou sua expertise na área de bebidas destiladas para dar uma nova dimensão ao perfume, reconectando o universo da perfumaria a um ofício artesanal. "O álcool tem vida, se distende, se oxigena, se manipula…", explica ele.

Para cada perfume, ele compôs um álcool sob medida, utilizando uma apurada técnica. No caso da fragrância C1, o trabalho foi realizado a partir de destilados de fermentação de cana-de-açúcar, com álcool envelhecido em barril. Já na elaboração do perfume J1, cuja fórmula contém bagas de zimbro, foram usados garrafões de vidro. Por fim, para sublimar as notas de momiji da vela perfumada criada por Annick Ménardo, Nicolas Juhlès elaborou um destilado de pera "que confere uma espécie de intensidade sutil, reinterpretando completamente o concentrado".

Na verdade, trata-se de um trabalho de composição a quatro mãos, que associa o perfumista e o mestre destilador.

Abstraction Paris e suas safras de perfumes

Dificilmente falamos de vinhos e espirituosos sem mencionar o tempo, a mais absoluta das matérias-primas. Velhos vinhedos, safras excepcionais e indicações do gênero extra old são prerrogativas reservadas aos melhores do setor.

No entanto, o tempo é raramente mencionado quando o assunto é perfume. Muito pelo contrário: ele pode até ser visto como um inimigo. No máximo, nos referimos a ele ao evocar a possibilidade de conservar um frasco por muito tempo sem que as características do perfume sejam alteradas. O ano de colheita das matérias-primas e as potenciais variações são simplesmente atenuadas, apagadas, silenciadas.

Atenuar variações é uma técnica que Sébastien Plan, perfumista que fundou a Abstraction Paris, conhece perfeitamente. No início da carreira, trabalhando para a Robertet, ele aprendeu a arte de construir communelles, técnica de mistura de diversos lotes de uma essência natural, com o objetivo de criar um padrão que se perpetue no tempo. "Esse método me deixava muito frustrado", conta Sébastien, "porque, no fundo, a ideia de lidar com variações me agrada".

Com um sólido know-how acumulado, quando lançou sua própria marca ele decidiu partir na direção oposta: fazer tudo diferente, abraçar a variedade e celebrar o caráter ímpar de cada produção. Assim nasceu a Abstraction Paris e suas safras de perfumes.

Dando ênfase à especificidade de cada matéria-prima, Sébastien Plan desenvolveu um método que requer o envelhecimento prévio do concentrado. A etapa de incorporação do álcool só é realizada in loco, no momento da compra do perfume. O segredo reside na maturação, no perfeito equilíbrio entre atmosfera impregnada de oxigênio e de nitrogênio. Cada dupla de perfumes da marca está disponível na versão do ano ou em versões de safras anteriores, que se sucedem a partir da safra de 2022 e por pelo menos dez anos, quem sabe até mais.

Com o tempo, o perfume segue sua própria evolução e se revela através de novas dimensões: "é um diálogo entre as diversas facetas do perfume, que vão se sobressair ou adormecer".

Essa estratégia seduziu seus colegas perfumistas Alexandra Carlin, Alex Lee, Amélie Jacquin e Mylène Alran. Cada um criou uma dupla de perfumes extremamente pessoais, que fazem "referência a um momento compartilhado com alguém tão especial que acabamos vivendo esse momento por intermédio do outro, a ponto de fazer abstração do mundo à nossa volta". Veremos como as fragrâncias Accidental Maybe, Slow Burn Desire e Here we Belong evoluem com o tempo.

Perfumes e espirituosos, interconectados como nunca!

Paleta olfativa, maturação e maceração formam os alicerces de pontes dinâmicas e inspiradoras pelas quais as trocas circulam em mão dupla. Isso porque o universo das bebidas destiladas também busca inspiração no mundo dos perfumes para se reinventar.

Um bom exemplo é o 44 N°Gin, que alia métodos modernos de destilação e técnicas de extração utilizadas pelo setor de perfumaria. "Primeiro gim destilado na Côte d’Azur, ele se inspirou na arte dos mestres perfumistas da cidade de Grasse".

Podemos citar também a H. Theoria, especializada em "licores franceses autorais": uma das fundadoras da marca cursou a renomada escola de perfumaria ISIPCA, enquanto a outra é aficionada por sabores. Vale também mencionar Emanuele Balestra, que compõe os coquetéis do Hotel Majestic, em Cannes, como "perfumes comestíveis".

Em matéria de design, são numerosas as possibilidades de sinergia: por exemplo, a criação TOTEM, da agência Partisan du Sens, para o projeto Make a Mark, que busca explorar e inovar no segmento de embalagens de luxo, potencializando a confluência entre perfumes e espirituosos. Por meio de uma oferta de mixologia destinada à geração Z, ela protagoniza essências olfativas a vaporizar, personalizando assim a experiência de degustação.

Sem dúvida alguma, percorrendo caminhos povoados por frascos, inspiração, expertises e maturação, os perfumes mantêm o seu poder de nos inebriar.